sábado, 23 de maio de 2009

Uma escola nova?

Lídia Aratangy. Foto: Daniel Aratangy
Lídia Aratangy. Foto: Daniel Aratangy

Quando uma criança adentra o portão de uma escola (sobretudo pública), ela já é vencedora de várias batalhas: venceu a luta contra a desnutrição, a desidratação, as verminoses; resistiu à ilusão de liberdade das ruas; e, mais importante, essa criança está apostando na escola, nessa primeira rodada da injusta competição entre a escola e o trabalho infantil. Por tudo isso, ela deveria ser recebida como herói.

Mas não é o que costuma acontecer. Ela ainda vai ter de enfrentar a violência da própria escola, muitas vezes sutilmente disfarçada, para se defender da demolição sistemática engendrada pelo preconceito de colegas e professores. Apelidos maldosos e brincadeiras embaraçosas são exemplos de situações que transformam a escola num palco de agressões cruéis. O professor, mesmo sem se dar conta, pode funcionar como aliado dos alunos mais integrados, tornando-se agente desse processo de exclusão dos menos competentes. Sua expectativa sobre o sucesso ou fracasso do aluno é decisiva: aqueles em cujo sucesso o professor acredita, tendem realmente a ter resultados melhores.

Assim, são ridicularizados e humilhados o aluno tímido, o que não consegue se exprimir com clareza, o desatento, o que “não tem cabeça para o estudo”, o que “não tem base”. Depois de algum tempo, essas crianças isolam-se e passam a ser tratadas com frieza e distanciamento. Exemplos de condenações prematuras e preconceituosas concretizam-se em frases como: “Se você não aprendeu isso até agora, não vai aprender nunca!”, “Você, de novo! Sempre você!”, Ou, pior ainda: “A minha classe tem três ou quatro alunos que se salvam, o resto não vai dar pra nada!”. Ao passar adiante esse tipo de informação, o professor contribui para que o rótulo de “caso perdido” transforme-se numa segunda pele do aluno, que acaba por incorporar sua condenação ao fracasso. Mas são justamente esses os alunos que precisariam receber atenção redobrada, pois é sobre eles que estão os olhos cúpidos dos traficantes de drogas, dos aliciadores de menores para o trabalho clandestino, dos abutres da prostituição infantil.

A escola não é responsável por essas situações de injustiça, mas ela é detentora das armas mais poderosas para transformar essas crianças de vítimas em agentes de mudança. Dentro de seus muros elas encontram, muitas vezes, a única esperança de reversão da expectativa de fracasso, talvez o único modelo de convivência digna que a vida lhes pode oferecer. A escola tem o poder de ajudar a criança a fazer uma tradução crítica das vivências que traz, mostrando-lhe a possibilidade de uma nova leitura do mundo e desenvolvendo nela a esperança de um mundo mais justo.

Para que o processo educacional seja bem sucedido, as relações dentro da escola devem ser pautadas pelo respeito mútuo – entre professor e alunos; entre os alunos; entre os gestores e a população escolar. Dentro da sala de aula, a relação entre professor e alunos deve se basear na confiança dos alunos no saber do mestre, na esperança do professor no futuro de seus alunos.

O filme Entre os Muros da Escola é uma preciosa autocrítica de um professor sobre o fracasso da escola em atender seus alunos, uma verdadeira aula sobre o processo pelo qual a instituição, ao marginalizar seu aluno, vai fazer dele um marginal. Sutilmente, o filme mostra como as várias instâncias envolvidas na educação daqueles jovens falham em sua tarefa. Vejamos algumas delas.

1. O espaço físico da escola é frio, inóspito, opressivo. O pátio de recreio não tem sequer um banco onde os jovens possam se sentar, não há uma sombra para abrigá-los, não existe nenhuma quadra esportiva onde possam jogar bola sem incomodar os colegas.

2. A relação da escola com os pais dos alunos é precária e desrespeitosa: não há, entre os professores, ninguém que conheça a língua ou a cultura de origem de seus alunos; a escuta é desatenta e desrespeitosa, o discurso dos pais não é levado em consideração; a escola não se interessa pelo que se passa com seus alunos fora de seus muros.

3. O professor François, protagonista do filme, embora bem intencionado, é totalmente descrente da competência de seus alunos, e inadequado na sua relação com eles. Sua agressividade se revela no uso frequente da ironia e do sarcasmo, provocando nos alunos um sentimento de humilhação e vergonha, desfavorável ao processo de aprendizagem. Emblemática a conversa entre ele e o professor de História, quando este tenta sugerir uma integração entre as duas disciplinas e recebe uma resposta desinteressada e cínica sobre a incompetência dos alunos para entender um texto mais elaborado (mais adiante, a aluna considerada entre os menos capazes vai deixá-lo boquiaberto ao revelar que leu os Diálogos de Platão...).

4. A escola deixa passar excelentes oportunidades de exercer sua função educadora e formadora. Por exemplo: numa postura pretensamente democrática, os alunos se fazem representar nas reuniões do Conselho, mas nenhum dos professores presentes se dá ao trabalho de lhes explicar porque estão ali e como deveriam se comportar: apesar dos esforços das meninas para se fazer notar, os professores não lhes dão a mínima atenção, e agem como se elas fossem invisíveis. Outro exemplo: em várias cenas fica patente o valor da lealdade entre os alunos – mas a escola só valoriza os momentos de tensão e conflito entre eles (uma manifestação comovente da solidariedade entre os jovens é a atitude da menina agredida que, diante do professor, defende o colega agressor).

Nossa cultura enaltece a educação pautada no princípio de aprender com os erros. Seria bem mais eficiente aprender com os acertos. O professor François desperdiça uma boa oportunidade de recuperar seu aluno rebelde quando este lhe entrega o excelente trabalho fotográfico que fez quando solicitado a fazer sua autobiografia. É patente o encantamento do jovem por se ver elogiado pelo professor, numa demonstração da importância que atribui ao julgamento do mestre. Infelizmente, esse momento se perde. E o aluno reassume sua postura de contestação e rebeldia, que, sem encontrar canais mais adequados para se expressar, vai desaguar numa agressividade descontrolada.

É então que a escola perde a guerra. Aquele menino – bom filho, irmão carinhoso, colega leal e solidário – vai ser considerado, pelos gestores de sua escola, a maçã podre da qual a instituição quer se livrar, para proteção dos que ficam. Uma boa teoria para quitandeiros; péssima para educadores.

fonte: http://revistaescola.abril.com.b

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